InícioColunistasA ilusão meritocrática e a brutal desigualdade brasileira!

A ilusão meritocrática e a brutal desigualdade brasileira!

Professor Marcos Abraão

Um termo fortemente difundido, implícita e explicitamente, nos meios de comunicação, nas redes sociais e na vida cotidiana é meritocracia. São reportagens, coaches e influenciadores apresentando histórias de superação e os caminhos para que cada um, individualmente, possa alcançar o mesmo sucesso.

Essa lógica, contudo, não é nova. A revolução industrial e a economia monetária transformaram estruturalmente as relações de trabalho, sobretudo no âmbito valorativo, isto é, o significado do trabalho para os individuos.

Com o sistema capitalista, como demonstrou o sociólogo alemão Georg Simmel’, o homem deixou de ser ligado pessoalmente a outro sujeito, como ocorria na sociedade medieval, para constituir relações sociais de caráter impessoal, estabelecidas, no ambito do trabalho, entre atividade realizada pelo individuoeo dinheiro recebido de quem contrata seu trabalho. Nesse sentido, o trabalho desenvolvido e o dinheiro recebido pelo indivíduo foram cruciais para possibilitar liberdade no mundo modern0, pois, dentro de certas possibilidades, haveria condições de escolha individual que não eram possíveis na sociedade tradicional de relações pessoalizadas.

Na modernidade, portanto,o elemento central é a capacidade de trabalho e os resultados que podem ser entregues a partir dele. Assim, teríamos uma sociedade competitiva, na qual Os indivíduos “livremente lutariam para exercer as suas funções em troca de pagamento monetário que redundaria em acumulação de riqueza material, prestígio social e condições de escolha sobre o próprio destino.

Seguindo a lógica de Adam Smith, a busca pelo interesse particular faria com que houvesse a produção de beneficios públicos, isto é, os indivíduos “livremente” competindo seriam suficientes para gerar uma sociedade dināmica, livre e justa. O que ocorreu, contudo, foi bem diferente quando nos lembramos das aviltantes jornadas de trabalho, da utilização de mão de obra infantil e das péssimas condiçðes de moradia, higiene e alimentação a que estavam submetidos os trabalhadores no século XIX. Em 1932, o economista britânico John Maynard Keynes defendeu a necessidade de intervenção do Estado na economia para regular a competição, uma vez que seria fantasiosa a ideia de um mercado autorregulado
E do seu corolário, Isto é, os indivíduos inseridos no mercado em uma competição livre e justa. Suas teses foram cruciais para a constituição do Wefare State, ou Estado de bem- estar adotado pelas maiores economias liberais na primeira metade do século XX -,e que se baseou na oferta de educação, moradia, saúde, transporte público, trabalho, salário, previdéncia social como direitos sociais universais, e não como um serviço que poderia ser adquirido no mercado por quem pudesse pagar. Conjuntamente, regulou o mercado para que houvesse competiçao minimamente justa e que ocoresse a conjugação entre a produção de riqueza e combate à desigualdade social. O Estado de bem-estar representou, portanto, uma efetiva contestação a sociedade comandada pelo “livre” mercado. Se na prática a ideia de uma sociedade meritocrática havia sido contestada pela profunda desigualdade que secularmente se reproduzira na sociedade capitalista, e que foi enfrentada de modo concreto apenas como a intervenção estatal, no campo das ideias, como vemos hoje com toda a força, a ideologia meritocrática se reorganizou de modo ainda mais radical por meio da Escola Austríaca e, sobretudo, pelas teses do economista Friedrich Hayek.

minimização do Estado seria o caminho para a resolução de graves problemas brasileiros, como a corrupção e a desigualdade social.

Assim como ocorreu no século XIX, quando a realidade se contrapôs às ideias, vou apresentar alguns elementos do Brasil atual que ajudam a reforçar o caráter ilusório da meritocracia em um contexto marcado, como afirmei, por uma das maiores taxas de desigualdade do mundo. A partir de 2020, o mundo todo e o país, em particular, vivenciaram uma grande crise sanitária derivada do novo coronavírus, a pandemia da COVID-19.

Durante os dois primeiros anos da pandemia – o seu período mais grave -, os 10 homens mais ricos do mundo, segundo matéria publicada no site da Oxfam Brasil em 16/01/20223 , mais que dobraram suas fortunas, isto é, passaram de US$ 700 bilhões para US$ 1,5 trilhão. Enquanto isso, ainda segunda a reportagem, a renda de 99% da humanidade caiu e mais de 160 milhões de pessoas foram empurradas para a pobreza.

Como a meritocracia explica a concentração brutal de renda nas mãos de 1% da população global? Foi o esforço pessoal, o trabalho individual, a maior capacidade pessoal que explicam essa brutal concentração de riqueza nas mãos um grupo tão pequeno de pessoas? E o Brasil? Segundo matéria publicada no Portal UOL em 27/08/20214 , o Brasil “ganhou”, apenas naquele ano, 40 novos bilionários. Para o nosso caso, repito as mesmas perguntas: foi o esforço pessoal, o trabalho individual, a maior capacidade que explicam essa brutal concentração de riqueza nas mãos um grupo tão pequeno de pessoas?

Em perspectiva global e no caso brasileiro, em particular, não é o esforço pessoal e a vontade individual que explicam tamanha desigualdade. Para tanto, vejamos dados sobre o restante da população brasileira. Na mesma matéria do Portal UOL podemos observar que o Brasil passou a ter, naquele mesmo ano, 62,5 milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza, sendo que 17,9 milhões eram extremamente pobres. Assim, em cada 10 brasileiros 3 vivem abaixo da linha da pobreza. O abismo que separa os muito ricos dos muito pobres demonstra que um contingente tão grande de pobres e miseráveis não tem a ver, concretamente, com esforço, vontade, determinação ou luta individual. Mas sim com fatores estruturais, constituídos ao longo de nossa história, que fazem com que o acesso a direitos sociais constitucionalizados como saúde, educação, moradia, renda, Justiça, trabalho, previdência social seja bastante desigual conforme o lugar ocupado.

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